quinta-feira, 7 de abril de 2011

Os caminhos da generosidade


Washington Novaes 

Quatro dias após a data que marcava o 47º aniversário do golpe militar de 1964, às primeiras horas desta última segunda-feira, Goiás ficou mais pobre, em termos humanos, com a morte do ex-reitor da Universidade Católica, ex-professor de Filosofia do Direito, Dario Nunes Silva, aos 81 anos. Talvez poucas pessoas o saibam por aqui. Mas Dario foi figura exponencial da resistência ao golpe militar, do apoio, desde a primeira hora, aos estudantes e à sociedade em seus movimentos pela recuperação dos direitos cassados pela ditadura. Assim como teve atuação relevante na área social, em apoio aos setores mais carentes.
No pós-64, o foco de atuação de Dario era o Colégio São Vicente, nas Laranjeiras, Rio, onde, padre formado no Caraça (MG), era professor. Ali se reuniam muitos intelectuais e jornalistas, na época, para discutir com dignatários da Igreja Católica - d. Jorge Marcos, bispo de Santo André; d. Davi Picão, bispo de Santos; d. Cândido Padim, bispo no interior de São Paulo - e com os próprios sacerdotes do São Vicente, como apoiar os movimentos sociais e estudantis antiditadura. Era frequente encontrar nas reuniões o escritor Antônio Callado, o professor e crítico de arte Mário Pedrosa, o psicanalista e escritor Hélio Pellegrino, os jornalistas Newton Carlos, Jânio de Freitas, Ziraldo, Darwin Brandão, Zuenir Ventura - muita gente. Dario - ao lado de seus companheiros João Batista (hoje psicanalista), Marçal Versiani (depois jornalista de O Globo e escritor, já falecido), Luciano Castello (hoje psicólogo), Márcio (já falecido), Jorge e o diretor, padre Almeida - era um dos que mais se envolviam na questão.
As discussões em certos momentos eram memoráveis. Como no dia em que d. Cândido Padim dizia que a Igreja, enquanto instituição, não deveria envolver-se naquela questão política, porque corria o risco de errar e isso teria graves reflexos sobre a "Igreja povo de Deus". Esta poderia, por sua conta, correr riscos; a Igreja-instituição, não. Jânio de Freitas, zombeteiro, interrompeu: "Se eu bem entendo, a Igreja, quando acerta, é a Igreja-instituição; quando erra, é a Igreja-povo de Deus..." Num ex-convento dos Irmãos Maristas, em Mendes, também houve discussões extraordinárias entre Mário Pedrosa e os bispos. Quem ouviu, não esquece. Outro momento marcante foi a missa pela alma do guerrilheiro morto Carlos Marighela, celebrada no São Vicente por vários padres, na presença de poucas pessoas. Não significava apoio nem endosso aos caminhos de Marighella, e sim um ato de generosidade cristã e de repúdio aos caminhos da ditadura para eliminá-lo e desaparecer com seu corpo.
O apoio de intelectuais e da Igreja foi muito importante para a resistência à ditadura, que culminaria na "Passeata dos 100 mil", no Rio de Janeiro. Mas veio o Ato Institucional nº 5, cassou todos os direitos civis, fechou a porta a qualquer resistência. Dario sofreu, pagou caro como tanta gente. Acabou indo primeiro para Minas Gerais, depois veio na década de 70 para Goiás, onde foi trabalhar com o bispo d. Thomaz Balduíno. Casou-se com Terezinha, companheira fiel e dedicada de décadas. Nasceram os filhos Paulo e Letícia. Apaixonou-se pelo Araguaia. E depois de muitas voltas, chegou à Universidade Católica, à cátedra, à reitoria.
Episódio comovente, alguns anos depois, mostrou o espaço único que Dario ocupava no coração de tanta gente. Paulo, seu filho, foi baleado na cabeça - sem que até hoje se saiba por quem nem por que - quando aguardava um ônibus, no ponto. Passou semanas entre a vida e a morte. Mas deve ter sentido a força de uma manifestação alguns dias mais tarde, quando centenas de pessoas, entre elas d. Thomaz Balduino, deram um abraço no Hospital Neurológico, onde Paulo estava internado. Sobreviveu milagrosamente, lúcido, forte, amigo dedicado como o pai.
Dario deixou tudo organizado para o dia em que se fosse. Registrou documento em cartório manifestando sua vontade de que não houvesse velório, nem cerimônias, nem pompas, nem manifestações. Tudo muito simples, como era ele. Até o momento de encaminhar o corpo para a cremação. E de distribuir suas cinzas por Campina Verde, cidade mineira onde nasceu; Colégio Caraças, onde se formou padre; o Rio Araguaia, que dobrou seu coração; e Goiânia, que o acolheu e amou. E assim foi feito.
Hoje, deve estar ele por aí, olhando por aqueles que amou - e que o amaram em vida. Mas não apenas eles. Olhando também por todos os desassistidos, despossuídos da sorte, que ocuparam grande parte de sua vida e de sua atuação, como sacerdote, professor, ser humano. Velando com a mesma modéstia, que sempre o caracterizou. Mas com o mesmo desejo de transformar o mundo, torná-lo mais justo, mais igualitário. Sua memória permanecerá.

 Washington Novaes é jornalista

13 comentários:

  1. Este é o artigo que o Washington Novaes publicou hoje, no jornal O Popular.
    Eles eram amigos desde que moravam no Rio de Janeiro.

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  2. Coelho,

    só soube agora pela Paulinha do falecimento do seu pai e fiquei muito consternado. Li o texto do Washington e me emocionei com o obituário tão delicado e sensível. A distância agora dificulta a possibilidade de estar contigo pessoalmente e de lhe dar um abraço. Mas quero que você saiba que estou lhe mandando muita energia e força, que meu pensamento está contigo e com sua família.
    Um grande abraço,

    Fellipe

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  3. Paulinho e Letícia, meus queridos. Se encontrei três vezes em minha vida com Dario foi muito. Mas nestas poucas me impressionou a simplicidade para falar das coisas complexas. Uma vez eu disse algo sobre Gaston Bachelard e a fenomenologia da imaginação e ele numa frase, em tom modesto, clareou e organizou o que estava turvo e parecia impossível de resolver. Coisa de grandes mestres que são também grandes seres humanos, coisa rara, pois nem sempre estas qualidades se misturam. Um grande beijo pra vocês. Paz, Leo Caldi.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Paulo, apesar do pouco contato que temos receba meus sentimentos e saiba que a grandeza do seu pai continua, em sua essência, permanecendo viva com vocês. Dê meu abraço na Letícia!
    Luiz Flávio

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  6. Paulo, Letícia e Terezinha, amigos do coração, conheci Dario e Terezinha nos anos 80, ainda morando em Porto Nacional. Mais tarde Você, Paulo se transformou num dos maiores amigos do André, Letícia foi nossa aluna e hoje temos participado de muitos projetos juntos. Nossa admiração pela família é tão grande quanto nossa admiração pelo Dario. beijos Marcos/Edith/André ...

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  7. Letícia, nada mais eterno para o homem do que os frutos que deixa para a humanidade. Tua dedicação e talento honram a memória de seu pai. Conserve este legado e ele viverá para sempre...

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  8. Oi Paulinho,

    A publicacao me fez emocionar... Sabia que seu pai ("TiDario"), era uma pessoa muito, muito querida para mim! Alguem eu admirava e respeitava muito! E uma pena que nao tive mais oportunidades durante minha vida adulta de estar com seu pai..., e aprender mais! Eu sei que o TiDario tinha muito para me ensiar... Poxa, eu fui embora e perdi essas oportunidades! Estou muito triste em saber que voce perdeu um grande pai; e todos nos perdemos um mestre!

    Sua prima,

    Renata

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  9. Tio Dadá pessoa querida e amada!!!
    Realmente o mundo perdeu um pouco de amor em terra...

    Lilisse

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  10. Olá, Paulo, Olá Lets...

    Meus sentimentos de pesar pela perda. Que o alento da vontade dele seja o maior conforto a vocês. Admirável homem até no momento de resguardar a família de velórios e cerimônias dessa natureza.

    Abraços fraternos.

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  11. muito obrigado por compartilhar a vida do sr dario e me fazer conhecer um pouco mais da evolução deste estado... ele está bem... obrigado...

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  12. acho sinceramente que a vida me presenteou ao fazer meus caminhos crusarem primeiro com os do Paulo e depois com so do professor Dario, um ser Humano raro de uma sabedoria ímpar combinada com a simplicidade das pessas que compensam a nossa estada no mundo!
    acho que nesse momento só posso agradecer a honra de ter podido compartilhar parte da vida deste professor e da saudade que nos restará após sua partida!
    muita força para vc paulo e para a Leticia também, que vocês possam seguir também agradecidos por serem parte do legado de seu pai. Precisando estamos ás ordens! um abraço
    carol

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  13. As mais belas e amorosas palavras que se possa dizer a respeito do Eterno Educador e Amigo DARIO NUNES serão pequenas e incapazes de expressar a Grandeza desse Generoso e Amoroso Coração. Carlos Parada. Faculdade de Educação. Universidade Federal Fluminense- Niterói-RJ.

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